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ARTIGOS

Bruxaria e política: é possível ser bruxa e não ter posicionamento político?

Autora: Alina Duran

A sabedoria popular diz que falar de política sempre traz risco de conflito, ainda mais num momento como o do Brasil atual, em que a polarização ideológica e política está tão exacerbada já há anos, e sem previsão de melhora. Muitas pessoas escolhem, dentre seus círculos de convivência, as pessoas com quem acreditam poder falar de política sem brigar, enquanto outras buscam falar do assunto com o máximo de pessoas possível, mesmo sabendo que podem entrar em discussões que têm o potencial de afastá-las irremediavelmente de outras pessoas.

Ao mesmo tempo, vemos que muitas pessoas escolhem não se posicionar politicamente, pelo menos publicamente, justamente para evitar conflitos, rompimentos ou mesmo as diversas consequências de desagradar seu público alvo com suas opiniões, principalmente num momento em que todo mundo é influencer em potencial, e toda publicação pode viralizar a qualquer instante, para o bem e para o mal.

Nesse contexto, como ficam as bruxas? É possível para uma bruxa escolher a neutralidade política? Seria o não se posicionar uma escolha razoável, dentro dos preceitos da bruxaria?

Antes de mais nada, não se trata aqui de impor um comportamento a ninguém; toda pessoa é livre para fazer suas escolhas, e tem seus motivos para tanto. O que este artigo pretende, entretanto, é identificar brevemente algumas das bases sobre as quais se fundam os caminhos que são chamados de bruxaria, e instigar uma reflexão sobre a coerência de se assumir ou não um posicionamento político nos tempos atuais.

Pois bem. Sem adentrar nas particularidades de cada caminho dentro do grande guarda chuva que chamamos de bruxaria (que pode, inclusive, conter ou interseccionar com outras práticas), acredito ser possível identificar algumas crenças básicas comuns às pessoas que se identificam como bruxas, e dentre elas temos um entendimento de que o planeta Terra (e por consequência a natureza, como um todo) seria uma expressão de uma ou várias Divindades, e digno portanto de respeito e cuidado como se representasse (ou mesmo fosse) aquela(s) Divindade(s), e uma percepção de que o livre arbítrio seria um direito praticamente sagrado de todas as bruxas, que não poderia nem deveria ser cerceado por ninguém a não ser pelos parâmetros éticos de cada indivíduo.

A isso, soma-se também um entendimento de que, em muitos momentos ao longo da história, bruxas foram impedidas de exercer seu Ofício e/ou sua religião em razão de determinações advindas de pensamentos hegemônicos, e executadas pelo Estado no poder, contrárias não apenas às práticas das bruxas, mas por vezes à sua própria existência.

Pensando nesses aspectos, vemos que, quer uma bruxa se posicione politicamente ou não, fato é que ela e o ambiente onde ela vive estarão sujeitos às flutuações de poder do Estado (país, Estado, cidade, até bairro) no qual ela vive. Independente de se ela buscar se envolver ou não, a bruxa será afetada pela ideologia de quem estiver no poder naquele determinado momento. E já sabemos como isso afetou os cultos pagãos greco-romanos, proibidos pelo Imperador Teodósio quando ele tornou o cristianismo a religião oficial do Império Romano, não? Queiramos ou não, políticas seculares (mundanas) afetam as práticas religiosas de sua época, influenciando assim as vidas de cada indivíduo e do seu entorno, seja em nível local ou global.

Mesmo nos dias atuais, em que temos não só a revogação de leis antigas proibindo práticas religiosas divergentes das vertentes hegemônicas sancionadas pelo Estado, como também leis que protegem essas práticas, ainda temos dificuldade de assegurar o cumprimento dessas leis, e muitas pessoas (como os praticantes das religiões de matriz africana ou grupos indígenas no Brasil, por exemplo) ainda sofrem com violências cometidas por outros grupos religiosos ou setores da sociedade opostos a seus interesses, violências essas implicitamente permitidas pelas autoridades.

Num contexto desses, percebe-se que se isentar de posicionamento político se torna o equivalente a enfiar a cabeça na areia como um avestruz, buscando ignorar algo evidente na esperança de que aquela realidade vá embora. Nesse sentido, é importante também lembrar que as bruxas acreditam em criar suas próprias realidades, ou pelo menos ser possível influenciar a realidade a seu favor. E todas sabem (ou deveriam saber) que essa mudança não virá sem esforço, seja mágico ou social.

Se uma bruxa acredita na necessidade de preservação do meio ambiente como uma expressão da Deusa, por exemplo, além de atitudes pessoais nesse sentido (como se preocupar com a sustentabilidade de suas escolhas de consumo e com os danos provocados pela humanidade à natureza) a bruxa consciente perceberá que são os governantes que ditarão as políticas públicas que implementarão (ou não) melhores formas de se proteger o meio ambiente.

Por outro lado, se a bruxa preza pela sua autonomia, e pela liberdade de seguir a religião de sua preferência e as práticas mágicas que entenda convenientes, ela saberá que quanto mais dominados pelas religiões cristãs estiverem os cargos públicos eletivos (tanto no Legislativo quanto no Executivo) de onde vive, menor proteção do Estado ela terá para exercer essa liberdade, correndo até o risco de se ver desamparada em caso de violência direta.

Não quero, com isso, dizer que se não fizermos nada voltaremos à Idade Média; nosso contexto é outro, não há comparação direta possível. Mas estamos sim, enquanto praticantes de um Ofício malvisto por um grande setor da sociedade, sempre em risco de nos vermos cada vez mais despidas de nossas liberdades individuais. Nenhuma conquista legal e social é permanente; da mesma forma que se luta para obter o direito de se ser quem é, deve-se lutar para manter esse direito.

De modo semelhante, os avanços em relação à preservação do planeta são frágeis; qualquer retrocesso pode gerar danos irreversíveis ao meio ambiente. Somos poucos os defensores de Gaia, e uma bruxa consciente disso, e da relevância da Terra para sua religião, não estaria agindo de forma coerente se achasse que pode simplesmente abrir mão de se posicionar politicamente para assegurar a proteção do planeta.

Percebe-se assim que uma bruxa com um mínimo de consciência histórica e social não pode, em sã consciência, achar que seus valores serão defendidos por outras pessoas. Se ela deseja assegurar-se de que seus princípios serão respeitados, ela não tem escolha senão se posicionar, fazendo o que estiver ao seu alcance para exercer sua influência política enquanto cidadã para proteger os aspectos da sociedade material em que ela vive que podem afetar diretamente seu acesso aos aspectos espirituais de sua realidade.

Este artigo não pretende esgotar os dogmas da bruxaria (nem adentrar numa discussão sobre se há ou não dogmas na bruxaria); do mesmo modo, não pretende esgotar todos os argumentos a favor ou contra o envolvimento político das bruxas. Acreditamos apenas que é incoerente, pela própria natureza política dos princípios e valores da bruxaria, que as bruxas optem por não fazer o que lhes for possível para influenciar esse cenário político que exerce tanta influência sobre seu modo de vida.

Com isso, não queremos dizer que a pessoa deve se candidatar a cargos políticos; para quem não sente esse chamado, existem muitas outras formas de atuar politicamente como cidadã, começando por votar, para ocupar os cargos que decidirão seu futuro, em pessoas que ela acredita que tomarão decisões que estejam alinhadas com os valores da bruxaria.

Do mesmo modo, não pregamos o voto neste ou naquele candidato. Uma pesquisa relativamente simples não só a meios jornalísticos como a agências de checagem de fatos mostrará à bruxa quem são as pessoas candidatas para as quais os valores da bruxaria importam. Estamos falando de pessoas que não discriminem outras de nenhuma forma e respeitem o meio ambiente, a liberdade de culto, a autonomia das pessoas sobre seus corpos e todos os setores da sociedade. Um olhar crítico já deixa claro quem está por nós, e quem será contra nós.

E nesse sentido, importante lembrar que uma pessoa que não fala mal das bruxas nem as agride diretamente não deixa de ser uma ameaça a nós no futuro; afinal, quem não prioriza o meio ambiente priorizará o lucro; quem não respeita outros cultos não respeitará o nosso; quem não respeita todas as identidades não respeitará a nossa. Deixo aqui, enfim, para reflexão, um famoso poema de Bertolt Brecht (1898-1956) que demonstra com clareza como o primeiro atacado não será o último:

“Primeiro levaram os negros

Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei
Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”



Sobre a autora: Alina Duran é Alta Sacerdotisa da Tradição Alexandrina em São Paulo, Brasil, estando à frente do Templo do Vale.

Perguntas Frequentes: FAQ
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